quarta-feira, 22 de julho de 2009

Schering é condenada por comercializar "pílulas de farinha"

Medicamento Ineficaz, chamado "Pílula de Farinha". Relação de consumo. Ausência de excludentes de responsabilidade.

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - TJRJ.
DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL
Apelação Cível: 2007.001.68915
Apelante: Schering do Brasil Química e Farmacêutica Ltda
Apelado: Roselane Alves Vieira e Outros
Relator: Des. Roberto Guimarães
Relator p/ Acórdão: JDS. Desª. Valéria Dacheux

Direito do Consumidor e Processual Civil. Medicamento Ineficaz, chamado "Pílula de Farinha". Relação de consumo. Ausência de excludentes de responsabilidade. Prova da inexistência do nexo causal entre a utilização do medicamento ineficaz e o dano que não foi afastada pela ré, a quem competia tal comprovação, por força da inversão do ônus da prova que se impõe na espécie.

Consumidora que durante nove anos tomou o anticoncepcional sem engravidar, porém no período em que são despejados "placebos" no mercado vem a conceber gêmeos. Princípio da proteção ao consumidor que deve auxiliar na interpretação das regras processuais acerca do ônus da prova. Gravidez inoportuna causa danos à personalidade. Precedentes do E. STJ. Recurso a que se nega provimento. Maioria.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 2007.001.68915, em que é apelante Schering do Brasil Química e Farmacêutica Ltda. e apelados Roselane Alves Vieira, Caio Alves Vieira, e Lara Alves Vieira.

A C O R D A M os Desembargadores que compõem a Egrégia Décima Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por maioria de votos, em negar provimento ao apelo, tudo nos termos do voto da JDS. Desª. Revisora, vencido o Des. Roberto Guimarães, relator, que o provia.

Rio de Janeiro, 11 de Maio de 2009.

JDS. Des. VALÉRIA DACHEUX
Relator p/ Acórdão

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL
Apelação Cível: 2007.001.68915
Apelante: Schering do Brasil Química e Farmacêutica Ltda
Apelado: Roselane Alves Vieira e Outros
Relator: Des. Roberto Guimarães
Relator p/ Acórdão: JDS. Desª. Valéria Dacheux
V O T O
Integra o presente o relatório de fls. 1014/1018.

O recurso é tempestivo, e foi regularmente preparado, consoante atesta a certidão de fl. 981. Estão presentes, ademais, os outros requisitos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade, razão pela qual voto no sentido de que o mesmo seja conhecido.

No mérito, a irresignação não vinga.

Cuida-se de demanda em que se discute a responsabilidade civil da empresa-ré pelo fato de terem sido despejadas, no comércio, pílulas anticoncecpcionais ineficazes.

O episódio ficou nacionalmente conhecido como sendo o caso das "pílulas de farinha", tendo surgido inúmeras demandas em todo o território brasileiro que imputavam a responsabilidade civil pelos danos decorrentes da ingestão do medicamento defeituoso à fabricante, ora apelante.

Inicialmente, a despeito de todo o esforço argumentativo da defesa, inegável tratar-se a relação jurídica em exame como de consumo.

Independentemente de ter havido, ou não, a introdução involuntária do produto - medicamento - no mercado, como se alega, não deixa a ré, ora apelante, de ser considerada uma fornecedora de remédios, já que assim é notoriamente conhecida por toda a população brasileira, como também pelo fato de terem sido colocadas à venda no mercado nacional tanto pílulas com o princípio ativo, como os placebos desprovidos de ação terapêutica, ambos produzidos pela ré.

Vale aqui fazer uma digressão a respeito do quadro fático em que se deu o evento. A empresa, ora apelante, ao testar maquinário que realizaria a embalagem dos medicamentos, produziu uma série de placebos, cuja aparência e armazenamento eram idênticos aos dos medicamentos, salvo no que diz respeito ao número de série.

Entretanto, ao invés de proceder ao descarte eficaz desses placebos, não o fez - e até hoje não se sabe onde ocorreu a falha - que acabou por permitir que milhões de pílulas ineficazes fossem despejadas no comércio.

Ou seja, a empresa ré produziu tanto medicamentos eficazes como ineficazes, despejando ambos no mercado, ou então impedindo que esses últimos não o fossem, já que não adotou padrões de segurança mínimos, exigidos para um fornecedor de remédios.

Como já reconhecidos em diversos outros julgados, inclusive, pela Egrégia Corte de Uniformização, o STJ, "a ré não mantinha um mínimo controle sobre quatro aspectos essenciais da cadeia produtiva, quais sejam: a) sobre os funcionários, pois a estes era permitido entrar e sair da fábrica com o que bem entendessem; b) sobre o setor de descarga de produtos usados e/ou inservíveis, pois há depoimentos no sentido de que era possível encontrar medicamentos no lixão da empresa; c) sobre o transporte de resíduos; d) sobre a incineração de resíduos. E isso acontecia no mesmo instante em que a empresa se dedicava a manufaturar produto com potencialidade extremamente lesiva aos consumidores." (REsp 866636, rel. Min. Nancy Andrighi).

Saliente-se, ademais, que a relação consumerista se dá em razão das partes que a travam, e não do produto objeto da negociação, vale dizer, pouco importa ser o produto colocado no mercado aquele que o fornecedor efetivamente pretendia, bastando que o coloque, ou não adote as medidas eficazes para que o produto defeituoso por ele produzido não entre em contato com a população.

Tratando-se de relação de consumo, aplicáveis à hipótese as normas imperativas do CDC, notadamente os artigos 12 e seguintes, que tratam dos acidentes de consumo, ou seja, os fatos danosos decorrentes da utilização de produtos defeituosos.

Do regramento legal, infere-se que a responsabilidade do fornecedor é objetiva, ou seja, independe de culpa, podendo ser ilidida por fato exclusivo da vítima, fato exclusivo de terceiro, ausência de nexo de causalidade entre o defeito do produto e o dano, bem como inexistência do defeito, e o fato de não ter colocado o bem no mercado.

A existência do defeito é fato notório e incontroverso. Outrossim, a apelante não logrou êxito, como acima afirmado e já reconhecido por todas as cortes brasileiras, em provar que não colocou o produto em circulação.

No que se referem às demais excludentes, veja-se que o ônus da prova desses fatos, previstos no art. 12, par. 3º, do CDC cabe à empresa, "de vez que o dispositivo afirma que 'só não será responsabilizado quando provar' tais causas." (in, Manual de Direito do Consumidor, Antonio Herman Benajamin, et al, pg. 129).

Não logrou ela êxito, repita-se, em comprovar como os medicamentos ineficazes foram despejados no mercado. Tampouco era de se aplicar a norma do inciso primeiro do acima citado artigo, já que sua ratio consiste na exoneração da responsabilidade do fornecedor por inexistir nexo de causalidade entre o dano e sua atividade. Ora, como no caso há relação causal entre a ineficácia no método de descarte (fase da cadeia produtiva) e o dano provocado, conclui-se por sua inaplicabilidade.

O fato exclusivo da vítima e de terceiro (farmacêutico) também se afasta, uma vez que as embalagens que continham os medicamentos ineficazes eram idênticas àquelas que traziam os eficazes, salvo no que diz respeito ao número de série e validade.

Nos dizeres da Min. Nancy Andrighi "as pílulas-teste foram produzias em perfeita identidade formal com o verdadeiro MICROVLAR."

Diante desse quadro, não se pode exigir do homem médio - a vítima - que proceda a uma análise minuciosa da embalagem do remédio, posto que ao adquiri-lo presume que esteja em boas condições de uso.

Nenhum consumidor, e seria estranho que o fizesse, busca verificar o número de série e/ou validade do medicamento quando acaba de comprá-lo, até porque sua visão aceita o selo metálico e, assim, o identifica como produto válido.

Assim, não sendo exigível esse comportamento do cidadão comum, não se pode falar em fato exclusivo da vítima por não ter verificado a embalagem do medicamento.

Tampouco se pode falar em fato exclusivo da vítima pela utilização do placebo quando já divulgada sua distribuição. Vê-se de fl. 16 e das certidões de nascimento acostadas aos autos que os autores menores foram concebidos em julho de 1998, mês em que se iniciou a divulgação de que os placebos haviam sido colocados à venda.

E mais, ainda que ciente do despejo de placebos no mercado, acreditou a autora que a empresa tivesse cumprido seu dever de recolher os medicamentos ineficazes, como era de se esperar de qualquer fabricante que pauta sua conduta não só na obtenção do lucro, mas também, e antes de tudo, na proteção do consumidor como determina a Constituição Federal (art. 170).

Não se pode falar, tampouco, em fato exclusivo do farmacêutico que vendeu o medicamento ineficaz à autora. Quando muito era ele responsável solidário pelos danos causados, mas nunca o único.

Aliás, o farmacêutico não passa de um comerciante do produto, e como tal não é terceiro em relação a cadeia de consumo, sendo inaplicável à excludente invocada.

Nesse sentido já se pronunciou o E. STJ no aresto já citado "a alegada culpa exclusiva dos farmacêuticos na comercialização dos placebos parte da premissa fática que é inadmissível e que, de qualquer modo, não teria o alcance desejado no sentido de excluir totalmente a responsabilidade do fornecedor".

No que toca ao nexo causal entre o defeito do produto e o dano experimentado pela autora reside a maior controvérsia.

O douto relator entende inexistir prova de sua ocorrência na hipótese. Entretanto, analisando os autos, e a ele rogando todas as vênias, tenho que a solução mais adequada e que atende os anseios de proteção ao consumidor é aquela que o reputa verificado.

Em se tratando de relação de consumo, é possível a inversão do ônus da prova, quando forem verossímeis as alegações, ou hipossuficiente o consumidor.

Este é o quadro dos autos, uma vez que é inegável: i) a comercialização de medicamento ineficaz; ii) a concepção dos menores em época em que esse produto estava no mercado - julho de 1998; iii) o uso regular do medicamento pela primeira autora, consoante atesta seu médico em depoimento prestado à fl. 799.

Assim, diante desse quadro, levando-se em conta que se impõe a inversão do ônus da prova, caberia a ré, ora apelante, demonstrar que a inexistência de nexo de causalidade, ou seja, que a autora não tomou o placebo ao invés do medicamento eficaz.

Não fez ela prova desse fato, uma vez que o depoimento do farmacêutico (fl. 800), não é idôneo o suficiente, já que poderia ser ele responsabilizado por ter colocado o medicamento ineficaz em circulação.

Ora, se assim o é, suas afirmativas são parciais, e não podem ser levadas em consideração pelo juiz, à mingua de prova documental ou quaisquer outros elementos que as corroborem.

Atente-se, ademais, que naquela época a validade e o lote dos medicamentos adquiridos não vinham discriminados nas notas fiscais.

Mostra-se, também, irrelevante o local da compra do medicamento, fato este em que se firma o voto vencido, posto que o que se discute é se houve ingestão do medicamento ineficaz.

Outrossim, não pode comprovar a ré que seu produto não tenha sido distribuído a diversos representantes do Estado do Rio de Janeiro.

A prova pericial tampouco socorre o réu, já que foi realizada três anos após os fatos, não sendo exigível que a autora se recorde com precisão das datas e acontecimentos, especialmente esses fatos tão corriqueiros, como a compra de medicamento de uso regular.

Ademais, o fato de não ter sido apreendida nenhuma cartela de placebo neste estado não leva a conclusão inequívoca de que estes não foram aqui comercializados, já que a apreensão foi por amostragem, e em época posterior ao despejo, quando os medicamentos já podiam ter sido adquiridos e guardados na residência da autora.

Enfim, robusta a prova de que a autora há nove anos tomava o medicamento sem ter engravidado, e que coincidentemente com o derrame no mercado de anticoncepcional ineficaz veio ela engravidar, tenho que o nexo causal entre o defeito do produto e o dano causado está verificado.

É impossível exigir da consumidora que trouxesse aos autos as cartelas das pílulas ingeridas, posto que não se faz comum a guarda de embalagem de remédio utilizado.

Em sentido semelhante do que ora se afirma, o E. STJ, em recente julgado da relatoria da Min. Nancy Andrighi, ententeu que "Por sua vez, além de outros elementos importantes de convicção, dos autos consta prova de que a consumidora fazia uso regular do anticoncepcional, muito embora não se tenha juntado uma das cartelas de produto defeituoso. Defende-se a recorrente alegando que, nessa hipótese, ao julgar procedente o pedido indenizatório, o Tribunal responsabilizou o produtor como se este só pudesse afastar sua responsabilidade provando, inclusive, que a consumidora não fez uso do produto defeituoso, o que é impossível.

- Contudo, está presente uma dupla impossibilidade probatória: à autora também era impossível demonstrar que comprara especificamente uma cartela defeituosa, e não por negligência como alega a recorrente, mas apenas por ser dela inexigível outra conduta dentro dos padrões médios de cultura do país.

- Assim colocada a questão, não se trata de atribuir equivocadamente o ônus da prova a uma das partes, mas sim de interpretar as normas processuais em consonância com os princípios de direito material aplicáveis à espécie. O acórdão partiu das provas existentes para concluir em um certo sentido, privilegiando, com isso, o princípio da proteção ao consumidor." (REsp 1.096.325/SP. Grifos acrescentados)

Os danos também são evidentes. Não se venha argumentar que a gravidez só pode trazer sentimentos positivos para uma pessoa. Tal raciocínio se mostra cabível quando ela é querida ou até mesmo esperada.

No caso, entretanto, é inegável que a autora optou por não mais ter filhos, passando, desta forma, a fazer uso do Microvlar como meio contraceptivo.

A inserção inesperada no seio dessa família de duas crianças, quando a opção da autora era não mais os ter - tanto que fazia uso do método contraceptivo - causa-lhe frustração e angustia, notadamente por ter, apenas em nove meses, que ajustar toda a rotina da família em função dessas duas novas vidas que integrarão o lar.

Aliás, outro não é o entendimento do STJ que pontua em hipótese semelhante que "O argumento da Schering, da forma irrestrita como está exposto, leva ao paradoxo de se ter uma empresa produtora de anticoncepcionais defendendo que seu produto não deveria ser consumido, pois a maternidade, ainda que indesejada, é associada à idéia de felicidade feminina".

Enfim, frustrada essa opção da mulher de não ter filhos, inegável daí decorrer danos à personalidade.

No que toca ao quantum arbitrado (R$ 15.000,00) este se mostra bastante módico, só não sendo majorado por força do princípio que veda a reformatio in pejus, já que os autores não se insurgiram contra a sentença.

O pensionamento aos infantes também é devido a medida que sua concepção se deu em razão de vícios do produto, que acabou por agravar a situação financeira familiar, diante do inequívoco e inquestionável aumento dos gastos da família, para suprir as necessidades vitais das crianças. Esse decréscimo patrimonial é que é reparado com a indenização concedida.

Enfim, a sentença deu justa solução a lide, levou em consideração o princípio da proteção ao consumidor, e, portanto, não merece qualquer reparo. Outrossim, verifica-se que também está em consonância com a manifestação da Corte Superior de Justiça sobre a questão posta em discussão.

Assim, rogando vênias ao relator, votei no sentido do desprovimento do recurso.

Rio de Janeiro, 11 de Maio de 2009.

JDS. Des. VALÉRIA DACHEUX
Relator p/ Acórdão

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